domingo, 16 de agosto de 2009

II - Passagem pela Espinha do Mundo

Ninguém sabe direito o que se esconde naquelas montanhas, além dos malditos orcs, rapaz; mas posso te dizer que é mal...”.

Illos, condutor de caravanas a um aventureiro novato.

caravana, formada por seis carroças e oito homens a cavalo, prossegue sua viagem. Logo, os dias se tornam cada vez mais frios, à medida que o início de inverno em Luskan torna-se uma vaga e boa lembrança para aquecer o espírito dos viajantes.

Numa das paradas da caravana, o jovem cavaleiro de Tyr se aproxima novamente da carruagem do senhor Valerius.

Do lado de fora da carroça, apenas um casal de guerreiros, trajando vestimentas com insígnia de um machado cinzento sobre um fundo vermelho escuro e portando cicatrizes, tomaram coragem suficiente para se deleitar com o ar frio.

Rasmuzen, recostado tranqüilamente na entrada da carroça, encara maliciosamente os passos do paladino, contudo não impede sua aproximação.

Ao perceber que o homem provavelmente o tomaria por um mero mercenário novamente, o jovem lança sua capa à frente, fazendo com que o grande símbolo do Deus da Justiça se faça aparecer. Após uma rápida flexão, o jovem olha nos olhos de Valerius e pergunta:

“– Mikal di Vantè Aztoz, servo de Tyr... Vim saber se sua viagem está sendo agradável, vossa excelência, e para mais uma vez relembrar os conselhos que lhe dei...”.

Dentro da carroça onde se encontra o nobre de Waterdeep, Valerius tem sua conversa interrompida com uma figura encoberta da cabeça aos pés por um longo e grosso manto cinzento com entalhes indecifráveis. Por alguns momentos, olha de relance para Mikal, recolhendo para dentro de suas vestes um pequeno rolo de papel.

O nobre olha surpreso ao descobrir a “natureza” do audaz guerreiro. Todavia, sua expressão de descontento é grande.

“–... Essa região é extremamente inóspita, até para o mais antigo morador dela; apesar de bela, é fatal. Como bem sabe, atravessaremos territórios habitados por orc e kobolds, e todo tipo de escoria maléfica; mas, mesmo assim, não devemos importuná-los, se eles nada fizerem a nós... Vejo que seu guarda costas é hábil, mas sozinho pouco vai garantir sua segurança... Então, os conselhos dados por esse ‘mercenário’ são válidos e relembrados, milorde!”.

Apesar de irritado com o inoportuno paladino, Valerius passa a mão pela boca, num claro sinal de buscar tranqüilizar-se antes de responder:

“– Então, és um paladino de Tyr, hummmpfff... Agradeço por sua solicitude e devoção com seu dever, jovem, mas, como disse antes, possuo boa proteção com meu leal servo, Rasmuzen; portanto, não há necessidade de que mantenha sua atenção em minha presença, o que alias eu espero que EVITE daqui por diante, já que não tenho intenção de chamar nenhuma atenção para mim, pois, como disse, há feras brutais perambulando neste local e desejo ser mantido em segredo, e não como alvo destas criaturas inferiores!”.

A figura envolta em mantos permanece silenciosa, aguardando o término da conversa.

O paladino continua:

“–... Desculpe por tomar tanto de seu tempo e por importuná-lo. Espero não tê-lo ofendido, pois não era minha intenção, e espero, novamente, ter me feito claro!”.

“– Você já havia dado seus avisos antes rapaz, mas parece ter a inoportuna habilidade de incomodar–me, e creio que esta sua insistência vai acabar prejudicando a mim e a teu serviço SE persistir nessa conduta, compreende? Portanto, prossiga com teus deveres, senhor!”.

O nobre pomposo volta-se imediatamente para os pequenos cartões coloridos em suas mãos, olhando com desdenho para o paladino. A estranha figura retoma suas palavras sussurrantes ao próspero waterdaviano.

O jovem Mikal se levanta, indo encontrar seus companheiros de viagem, companhias muito mais aprazíveis do que a do arrogante lorde.

Luther discretamente observa Mikal de dentro da carroça, esperando seu retorno. Depois que o paladino entra, pergunta das percepções e mesmo odores sentidos nestes dias, além de demonstrar interesse acerca de Valerius e os demais membros da caravana.

Pensativo, o paladino pondera sobre o que deve partilhar com Luther.

* Esse jovem me parece demasiado enamorado da guerra e intriga para um clérigo comum... Bom, melhor manter o olho nele e em Valerius, e ainda mais em Clatus, por Tyr! *

“– Valerius estava na companhia de seus servos e de um homem, com quem me parecia fazer negócios escusos... Mas ainda não quero julgar; não há prova o suficiente... Mas é bom que continue vigiando, Luther; mesmo porque, nesse frio, é realmente mais fácil sobreviver se você tiver algo para fazer e se concentrar!”.

O pequeno Clatus esfrega o rosto com uma das mãos, meio duvidoso, contudo começa a falar:

“– Hummm... Muito interesss... ahrammm... Interessante, senhor paladino. Quando estava caminhando para o pátio onde o senhor Beorg iria falar conosco acerca dos desafios aos candidatáveis para esta jornada, me lembro de ter visto um sujeito bem esquisito. Ele caminhava lenta, mas graciosamente por trás de seu manto cinzento cheio de escritas mágicas e falava pouco, mas juro que ouvi o próprio Orlegar, por sinal um bom homem, não há duvida, falar para um dos mestres carreteiros que ele deveria ser conduzido até Bremen, o destino de parte desta caravana!”.

Passados algumas semanas, o grupo de intrépidos viajantes começa a sentir os primeiros efeitos densos do famoso “inverno congelante do Norte”, ao alcançar a perigosa trilha na Espinha do Mundo, conhecida por abrigar as mais hostis criaturas de todo o Norte Selvagem.

A mera visão da carregada e enorme cordilheira, na forma de seus intransponíveis e infindáveis paredões de montanhas, que parecem desaparecer no céu causam um profundo impacto e reverência nos viajantes, que tem a rara oportunidade de contemplar a força majestosa da natureza viva, descrita por sábios e poetas como a derradeira estrada para a morada dos deuses.

Beorg, um senhor de barba e cabelos grisalhos com seu tapa-olho, conduz a carroça do grupo. Entre os solavancos no solo irregular percorrido pelo transporte, fuma tranqüilamente seu cachimbo:

“– Então, rapazes? Sempre me impressiono com este lugar, desde que vi estas montanhas pela primeira vez... Realmente, os deuses vivem por estes lados!”.

“– Realmente, senhor, nada em nosso norte pode ser feio; também acredito que os deuses vivem aqui, porque mesmo sob rigoroso inverno, nossas terras são lindas!”.

“– Pffff... Prr... Pra quem gosta de mumu... muito ffrrrr, frrriooo...”, contesta Clatus, esfregando nervosamente os ombros e pés, até retornar ao interior da carroça.

“– Realmente, garoto. Só quem vive muito na cidade não reconhece a beleza quando vê; mas, para mim, este lugar é muito mais bonito que qualquer cidade que já pisei – e olha que já estive em boa parte delas aqui no Norte!”.

Nardur, tranqüilamente acomodado, apenas dorme, recostado numa das paredes da carroça, relembrando combates e desafios que realizara nos poucos anos de vida.

Sorrindo para Clatus, o jovem guerreiro diz:

“– O que houve, Clatus? O frio acabou com sua curiosidade? Saiu da cidade tão excitado pelo norte gélido; afinal, ao sul quente e morno já não guardava mais segredos... Pegue...”.

O jovem guerreiro passa um cantil com um forte conhaque, extremamente forte; uma bebida indispensável no frio congelante.

“– Beba devagar, não quero ter que cuidar de ninguém bêbado nessa viagem, pequeno amigo!”.

O pequeno halfling agradece o gesto do paladino:

“– Muito obrigado, defensor da justiça; parece que vou precisar de mais teeem... ah... Ahhhh... Aaahhhtchhiiiimmm! Snif, sniff... Tembo bara me agostubar com os rigores desta mistediosa derra!”, expressa o quase adoentado Clatus ao tragar alguns goles.

“– Snirfffbl... Felisbente, tenho agui comigo, também, um dovo esdoque de binha beberagem, negociada com o senhor Beorg, tchuuu... Me desgulpem!”.

O jovem guerreiro de Tyr olha bastante consternado para a aparência do companheiro halfling, e uma linha de ternura e preocupação se vêem em seu rosto. O guerreiro sagrado se aproxima de Clatus:

“– O.K., Clatus, é melhor que cuidemos disso antes que você piore. A menor gripe, aqui, pode se tornar a pior das febres e doença, e matar muito rápido! Venha!”.

“ – Hãã? Obrigado, senhor, mas dã...”, tenta responder Clatus, enquanto é conduzido decisivamente por Mikal.

Mikal deita Clatus na carroça, próximo a Nardur, por ser a parte da carroça mais protegida. Retirando seu manto, dobra-o ao meio e cobre o pequeno halfling, que, mesmo com o manto dobrado, poderia tê-lo enrolado por todo corpo tranqüilamente. Então, pousando uma mão sobre a testa de Clatus e uma sobre seu peito, o jovem começa a entoar um hino a Tyr, ao qual, depois, todos podem perceber se parecer com uma oração.

* Grande Tyr, pai da justiça, sábio e poderoso, que conhece os caminhos, ouve o pedido do teu servo, que vive somente para glorificar teu nome e levá-lo a todos os lugares do mundo! Ouve a prece do teu servo, que pede tuas graças não sobre si, mas em favor de outrem; para que, não só por meus atos seja glorificado teu nome, mas pelo nome do ímpio que recebeu tal graça, senhor celeste, que mantém justa a balança e que impede a maldade com braço forte, justo! Dá a cura para essa pobre criatura, que apesar de não segui-lo fielmente, é uma vida que pode se perder injustamente por uma doença imunda... Cura esse ser pela mão do teu servo, que vive só pra servi-lo! *

A concentração do paladino evoca um pequeno brilho levemente amarelado e fosco a princípio; contudo, a medida que sua prece ganha vigor, uma força formiga por suas mãos e a luminosidade toma forma e intensidade suficiente para percorrer todo o corpo do Halfling, como um breve banho dos raios do alvorecer, purificando todo o mal estar.

Clatus sente seu corpo aliviar-se e um novo vigor se formar. Mais animado e ao mesmo tempo surpreso, o halfling olha nos olhos de Mikal:

“ – NOOOOSSA! Então estes são os poderes dos guerreiros sagrados... Jamais tinha visto ou sentido algo assim antes... Parece que rejuvenesci uns dez anos... Muito obrigado mesmo, senhor Mikal, não direi outra vez que os defensores de Tyr são pequenos tiranos, oops, desculpe!”

“ – Ora, seu pequeno ingrato!”. O jovem guerreiro cai numa gargalhada alegre.

O pequeno aventureiro dá um leve sorriso ao coçar a cabeça sem graça pelo comentário.

Mikal se vira para acordar Nardur suavemente.

“ – Vamos, Nardur, hora de comer... Separa alguns pães de viagem e uns pedaços de carne; oferece a Luther e a Beorg... Quanto a você, Clatus , trate de descansar!”

“ – O qu... ARRRRRRrrr!!”, reclama, meio sonolento, Nardur, ao sentir-se importunado. Esticando as pernas e o corpanzil, o orgulhoso bárbaro abre a pequena caixa ao seu lado, depois de rosnar, e pega os pequenos pedaços de provisão acomodados pelos carregadores em Luskan.

O pequeno halfling concorda com a cabeça, enquanto recosta-se confortavelmente noutra extremidade da carroça, para tomar novo gole de seu “remédio”.

Ainda intrigado, Clatus toma coragem de perguntar ao estranho clérigo:

“ – Ahmmm... Zenhor Ludher, snuuufffff...” – o pequeno puxa um lenço para assoar fortemente o nariz, para aliviar-se – “Eu ouvi o zenhor dizer que zerve uba tal de Agadiz, bas dunca ouvi falar dessa sua deusa, ahammmm... De onde ela vem e o que prega heim?”, completa o gripado halfling ao retomar uma talagada de seu “remédio”.

Luther responde a Clatus:

“ – Caro e jovem audaz Clatus, conheci a igreja de Akadis através de meus pais; ambos eram sacerdotes da igreja... Meu honrado pai desapareceu em combate contra outro membro da igreja, por motivos humanitários. Ele era um cruzado da Rainha dos Ventos; sei que no lado mais oriental de Faerun ela é conhecida com outro nome e tida como um Lorde denominado Teylas; ela ou ele não tem preconceitos e nem mesmo conceitos ou dogmas quanto a padrões humanos como masculinidade ou feminilidade, apenas nos parece uma Deusa... E quando falo em nós, refiro-me ao lado ocidental da igreja que a vê como uma Deusa. É descrita como uma Lady azulada, grande e translúcida, com asas emplumadas, que trilha pelas nuvens... Como outros Lordes Elementais, é despreocupada com seus seguidores em Toril, com reações difíceis de serem avaliadas, sendo vista mais como uma entidade alienígena, por abdicar de maiores responsabilidades com os mortais que não são nativos do Plano Elemental do Ar, sendo vista meramente como divindade mediana e seus seguidores como cultistas. É também como chamada de Teylas, o deus elemental do ar nas terras da Horda. Mesmo sem demonstrar afeição por seus seguidores, estes podem ter sua atenção quando realizam oferendas para ela queimando preciosos incensos aos ventos. Quando se manifesta, pode trazer bons ventos e chuvas gentis e ocasionalmente, controlar redemoinhos de ventos de breve duração, mas com força assombrosa. Durante o Tempo das Perturbações, ela não foi avistada nos reinos. Pessoalmente acredito que sua origem seja o plano elemental do Ar!”

Um tanto confuso e desorientado, Clatus responde:

“- Nossa senhor Luther, realmente deve ser um dos maiores devotos de sua deusa para saber tanto sobre ela... Eu já ouvi falar que existem outros mundos e lugares de onde vêem as criaturas da água, da terra, fogo e ar. Até já ouvi falar que alguns reinos cultuam estes seres, mas nunca tinha ouvido falar de devotos de uma criatura do ar antes... Espero que a senhora Auril não fique furiosa com o senhor vindo para suas terras tendo esta criatura como sua protetora!”

Desdenhoso, Nardur se coloca diante das certezas de Luther:

“- BAHHHH!!! Os grandes Espíritos de Rashemen são senhores de toda terra, ar, água, fogo, mar, vento, árvore e tudo que podemos ver, sentir e tocar... Assim falam as Wytchlans, e isto sim é a verdade. Você fala demais homenzinho!”, recrimina o forte bárbaro arrancando um naco de carne seca e encarando nervosamente Luther antes de se retirar para o coche.

O clérigo continua:

“- Se dependesse de mim ela tomaria o portfólio de Talos, o Lorde das Tempestades e já seria menos um Deus maligno em Faerun. Mas o Destino dos deuses e suas igrejas não é conhecido por ninguém abaixo deles! Tenho planos pessoais de alianças com algumas igrejas incomuns em Faerun, com certeza vou precisa de ajuda. Você gostaria de conhecer mais sobre Akadis? Você reza para alguma divindade pequeno?

“- POR TODOS OS DEUSES!!!! jamais diga isso novamente senhor Luther... caminhamos próximos da morada dos deuses agora. Imagina se o senhor das tempestades ouve sua zombaria? Provavelmente nos liquida e manda nossos espíritos para o Abismo... Melhor pedirmos logo sua clemência, bem como a de todos os grandiosos criadores e encerrarmos esta conversa que pode querer faze-los nos castigar!”, retruca o nervoso halfling que sacode a cabeça gesticulando e fazendo uma pequena prece de seu povo.

Observando o gesto de seu preocupado aliado, Nardur tenta tranqüiliza-lo, pousando sua forte mão sobre os pequenos ombros que ondulam brevemente:

“- Não se preocupe pequeno... Nardur pedirá ao grande caçador Vlalesdiq dos bosques de Jyurkov que nos dê força e proteção para despedaçar os inimigos que estiverem adiante!”

Descontraído com a discussão dos companheiros o jovem retruca a Luther

“ – Luther , Clatus tem razão... Não é justo desdenhar dos deuses sejam eles bons ou maus. A balança deve sempre estar equilibrada para que a justiça possa ser igual a todos... E Nardur meu caro companheiro tente ser mais gentil com Luther, acho que o frio afetou sua cabeça!”

Nardur devidamente compenetrado nas paragens gélidas e declives a volta do comboio, sequer percebe o comentário de Mikal, ao qual provavelmente responderia rispidamente.

Após se alimentar o paladino se isola um pouco do grupo e ainda sentado em seu canto, mais agora podendo ser notada uma posição bem mais austera o jovem paladino canta baixo alguns hinos e em seqüência fecha seus olhos e se mantém bastante concentrado, mesmo os grandes ventos que abatem a carroça não parecem nem mesmo tocar o paladino pela falta de movimentação, e até sua respiração parece se tornar praticamente inexistente.

* Tyr, poderoso pai celeste, justo, imparcial e correto, teu servo roga suas graças, teu servo pede tua proteção, que tua força se reflita em meus atos, que tua gloria se espalhe por todo o mundo, seu humilde servo também pede perdão por suas falhas, seus erros, e por todos os meus atos mesquinhos, que visavam a mim primeiro e não tua gloria. Pai celeste peço também sua graça e proteção, não só para mim mais para todos nessa caravana, bom ou mal, rico ou pobre, forte ou fraco, dá tua proteção e força com justiça e majestade para todos aqueles que forem dignos dela, olha por toda a justiça também grande Juiz em nossa grande Faerun, que teus servos e guerreiros espalhados pelo continente sejam sempre leais a ti e a teus idéias, da força a todos eles para tornar seu nome glorifica em todo canto do mundo, por fim senhor eu vos agradeço por cuidar do teu servo, por olhar por ele e dignar-se a perder um pouco de seu tempo e ouvir sua prece*

O paladino abre os olhos e começa a entoar um belo hino numa estranha linguagem (drow) e depois em língua comum, cantarola alguns hinos, até que se recosta na carroça e adormece.

Clatus, remexendo no grosso manto que o cobre apenas reflete sobre as imensas dificuldades em adaptar-se ao intenso frio antes de cair no sono.

No entardecer do segundo dia de travessia da grandiosa cadeia de montanhas o comboio diminui seu ritmo em virtude da densa neve acomodada ao longo da trilha.

Enquanto seguem lentamente pelo caminho. Os homens redobram sua vigilância na proporção que aumenta a tensão dos animais.

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